sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Viperino és tu

Contudo há de existir a ruptura. E mesmo que de forma antecipada para mim, não para você, consigo ver muito mais colorido. Hoje, os meus olhos são os mesmos mas as minhas sinapses cérebro-visuais como mudaram. Parece até coisa de alteração química, e é. Era preciso. Agulhas também ajudam a sustentar um grande animal congelado de asas abertas prontas para decolar pausado com um clique fotográfico mais flash e depois jogado para além sul. Eu, romântico que sou, sofro de amor e percebo que seus calcanhares de Aquiles têm asas carimbadas com viperino. Ben Jor J já escreveu que homens também amam mas os meninos não são capazes de viver o amor. Minha cabeça está salvaguardada, protegida de laranja, intocada. Já você está exposto.

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Janela

A noite é fria. Estou como costumeiramente fico, sozinho em casa. Nenhuma companhia. Nenhum barulho. Meus únicos aliados são os diversos travesseiros que estão espalhados pela minha cama e os dois que apoiam minha cabeça para formarem um ângulo perfeito para o meu vício da leitura. Estou confortavelmente encasulado em meu cobertor. O movimento repetitivo de meus olhos da esquerda para direita em ritmo frenético é quase automático. Termino de ler mais uma vez meu autor preferido, Álvares de Azevedo. Dessa vez devorei Noite na Taverna em dois dias. Eu sempre me surpreendo com cada nova leitura. Acho encantador a forma que ele descreve todo o ambiente que envolve a história. Os personagens são tão fascinantes que consigo me envolver com eles, posso dizer que são meus amigos. Por vezes, assumo que na maioria delas, suas conversas, suas dúvidas e suas teorias me convencem. Consigo até sentir o aroma que a taverna exalava. É realmente uma viagem transcendente. Contudo meus pensamentos me derrubam. Retomo a consciência ainda deitado na cama com o livro fechado sobre minha barriga, subindo e descendo com minha respiração. Em noites de frio como esta nada melhor para um solitário que uma caneca de café bem quente. - Ótima ideia! – exclamo para mim mesmo. Na cozinha coloco a água para ferver. Preparo meticulosamente todos os utensílios. Apenas abro mão do açúcar. Com minha caneca cheia de café liberando uma névoa sensual de fumaça retorno para meu quarto onde resolvo me sentar à mesa e imergir em outro mundo, o virtual. Mundo este que me encanta, me faz passar dias a fio buscando informações e fazendo milhares de outras coisas ao mesmo tempo. Sempre gostei dessa conectividade e a tecnologia me encanta cada vez mais quando descubro novas funcionalidades para aparelhos que são lançados e tornam-se obsoletos tão rápido quanto o por do sol. Esse dia, porém, estava diferente. Algo estava fora do que costumeiramente era rotina. Não que os site não estivessem no ar, os e-mails não chegassem ao seu destino ou as redes sociais estivem mornas. Tudo funcionava perfeitamente. Esse algo que incomodava era em mim, como uma cocheira que a gente não alcança. E se tudo estava tão estranho eu resolvi assumir essa posição. Resolvi experimentar e entrei em um desses chats que milhares de pessoas participam. Nada que acontecia me apetecia. Conversas vazias com pessoas desconhecidas, algumas insuportavelmente chatas, outras completamente loucas, algumas ainda tremendamente inconvenientes. Conversas essas que começavam e terminavam sem nenhum sentido. Embora não fosse tarde já era noite. Já me preparava para desligar o computador, levar minha caneca de café de volta para cozinha e embarcar em um sono tranqüilo que apenas os inocentes podem ter. Faria isso tudo se não fosse surpreendido pelo barulho de uma janela de diálogo subindo crepitante pela tela de meu monitor. Nunce pensei que as coisas passariam a ser tão diferentes depois deste simples fato de olhar através desta janela que se abria...

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Era mais um dia na praça

Já é quase noite, mas as luzes amarela-avermelhadas que clareiam a praça ainda não estão acessas. No banco um senhor, sentado, apenas contemplando. Um menino se aproxima.

Menino – Tio tem fogo?

Senhor Não fumo.

Menino Tem uma moeda?

Senhor – Não tenho.

Menino – Tem seda?

O senhor levanta e saca do bolso traseiro esquerdo um lenço de seda. Entrega para o menino que o olha sem entender.

Senhor – Pode ficar com ele. Logo estou voltando e tenho tantos outros guardados.

O menino segura o lenço. Continua sem entender. O senhor senta novamente, respira fundo e assovia. Confuso olha para um lado, para outro e pergunta para o menino que ainda está parado na sua frente, olhando para o lenço tentando entender.

Senhor – Você sabe se aqui tem algum ponto de encontro para cachorros perdidos?

O menino olha ainda mais confuso para o senhor.

Menino – O que?

Senhor – Hoje é a primeira vez que trago o Arte para passear. Receio que ele esteja perdido, pois nunca tinha caminhado por um cachorródromo. É a primeira vez que vejo um aqui na praça.

Menino – É a primeira vez que você vem na praça?

O senhor ri.

Senhor – Não, não... Eu já estive aqui várias vezes, mas toda vez que retorno a praça está completamente diferente então é como se fosse a primeira vez.

Menino – O senhor veio pela primeira vez na praça e deixou seu cachorro passear sozinho por um lugar que nem você conhece?

Senhor – Arte é um cachorro muito sagaz. Ele sempre reaparece, de uma forma ou de outra, sempre volta. Só não queria sair daqui porque quando eu voltar a praça já pode ser outra.

O menino com o lenço de seda na mão tem a cara cada vez mais confusa. Olha para o senhor e fala.

Menino – Meu, que viagem...

Senhor – Ah! Já ia me esquecendo... Você sabe por que o Arte chama Arte? Porque quando ele late parece que está gritando: Arte! Arte! Arte!

O menino não consegue segurar a gargalhada.

Menino – O senhor é muito louco...

Senhor – Pode me fazer um favor? Quando você encontrar o Arte diga que já voltei. Ele vai saber como me encontrar. É só você deixar ele farejar o lenço e saberá onde estou.

O menino ainda gargalha. O senhor saca um puncake do bolso da camisa e começa a usar. Em cada parte que ele passa ele desaparece. O menino se espanta e curioso se aproxima. Aos poucos só resta a boca do senhor que fala para o menino.

Senhor – Um dia você vai entender.

O Senhor some. O menino em choque se vira assim que o senhor se desfaz. A primeira coisa que ele vê é um grande cão grafitado na rampa que um skatista acabou de cair. Correndo em direção ao cão o menino coloca o lenço no focinho do cachorro que late: Arte! O sino da igreja toca 25 vezes.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Estroços

Escrevo para não explodir. Para não sucumbir. É meu grito silencioso que reverbera dentro de mim. Só em mim. É um terremoto com epicentro localizado pontualmente na parte esquerda do peito com profundidade de cinco a sete centímetros abaixo da placa esterno ligeiramente colocado ao lado da primeira costela. É maremoto. É destruição do equilíbrio. São ondas de desbaratamento que engolem vorazmente o que eu regava com zelo. O que eu nutria era o que me aniquilava. Abalos. Abalo. Rompimento. Cascatas de sucessivos pontos que só restavam ser ligados pela lógica ultra racional que derrama de mim. Eu percebo que são as pequenas ações que revelam as grandiosas verdades. É verdade. É intuição. Era o tempo que falava através dos tiques dos segundos, agora ele não fala mais. Acabou. Aniquilamento total. Há escombros. Partes do meu corpo desligadas por extirpação. Ervas daninhas. Mentiras. Há esperança. Houve. Abalos secundários. Amor. Era uma tentativa de um assentamento tectônico sobre a placa do Pacífico. Era a esperança de encontrar minha Atlântida. Meu amor. Minha sinceridade total. Não há mais respostas. Agora o que tenho é silêncio. Não sei se derivado da grande profundeza que estou, das grandes massas demolidas que estão sobre mim ou da ilusão que crio mesmo em pedaços separados que alguém seja capaz de me encaixar novamente, quem sabe como uma fenda que foi unida por magna resfriado. Se eu acreditei? O tempo todo! Se eu imaginei? Sempre! Se eu amei? Desde o primeiro olhar, quando do meu lugar suspeitei não passar do primeiro olhar. Nos olhamos. Saltos quânticos. Uma pena, pois o passado vivido no presente é corrosão. É insustentável. É deslocamento. É saudade. Fugindo dela corri tanto que minhas pernas doem mesmo desligadas do meu quadril. Essa fissura me jogou nesta ilha. Pequena ilha que eu sonhei ser nossa. Aqui não construo nada apenas chafurdo terreno arenoso. Ainda tenho esperança que aquele meu grito silencioso reverbere até chegar em ti. E que nos encontremos, novamente, aqui nesta ilha, depois daquele nosso alhar novamente se encontrar e fiquemos juntos, novamente, como ficamos sem se importar. Ruídos. Descanso.  

quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Ode ao fim

Eu jamais poderia imaginar que o amor fosse tão perigoso. No meu caso os meus amores foram a causa de meus melhores dias e também o porquê do final destes. Fui uma pessoa realizada. Tive sorte. Meus dias trouxeram não apenas um, mas dois amores. Sempre disseram que existem pessoas que passam a vida toda esperando um verdadeiro amor, porém este nunca chega. Comigo foi diferente. Tive dois amores que vivi intensamente. Talvez eu tenha sofrido mais que o necessário. Mesmo assim não me arrependo. Faria tudo novamente e ainda com mais intensidade. Eu sempre fui assim. Nunca me arrependi de nada que tenha feito, sempre me arrependi das coisas que deixei de fazer. Por isso vivi menos que costumeiramente um jovem na minha idade vive, isso é verdade. Mas também não me sinto culpado por isso, aliás, me sinto honrado. Levei uma vida muito parecida com a dos meus ídolos. Eles também viveram pouco, assim como eu. Diferente deles não deixei uma obra vasta e rica que muitas gerações vão exaltar, não farei parte da história assim como eles fizeram e provavelmente não emocionarei tantos quanto eles ainda emocionam. Fui romântico ao extremo assim como eles também foram. Esse romantismo exacerbado rendeu essa história, e assim como eles também pude tirar desse sentimento inspiração. Hoje termino de escrever com minhas últimas forças. Cada palavra dessas são grifadas com tamanha dor que apenas podem ser justificadas pela minha perseverança e desejo de mostrar a outras tantas pessoas que o amor é o mais puro e cristalino sentimento que existe e vale a pena se entregar a ele. Este foi meu dever. Mostrar que é possível amar incondicionalmente. Com a certeza do meu dever cumprido estou feliz apesar de toda dor. Essa felicidade foi o meio. Ela me possibilitou dizer isso. Deitado na minha cama agora eu quero fechar os olhos e pensar outra vez que eu amo vocês... Fecho os olhos para não escrever fim.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

O devir

Luz sobe.

A cena acontece em uma sala. É uma sala bagunçada. Algumas coisas não parecem fazer sentido. Os objetos estão deslocados de seus locais habituais. As cadeiras estão em cima da mesa. Os pratos estão embaixo dos pés da mesa. Os armários estão com as portas abertas e as roupas estão em cima do armário. Os quadros estão no chão, a toalha de mesa pendurada no lugar de um quadro, o sofá com os pés para cima e o tapete é usado do avesso. Embaixo dele há uma pessoa.

Entra um velho que observa a situação antes de falar.

Velho (se deparando mais uma vez com aquela situação) – Outra vez aí? Definitivamente você precisa melhor seu convívio social...

Jovem (saindo debaixo do tapete com tom de revolta) – Me deixa em paz! Eu só quero viver meu devir!

Velho – Isso está saindo do controle! Todo dia quando volto para casa encontro ela diferente! Olha pra isso... (indicando o ambiente)

Jovem – Será que ainda vai perceber neste tempo que te resta que a vida é mudança? Não suporto essa ideia de viver todos os dias iguais... Acordar cedo, ir à padaria, ler o jornal, voltar pra casa e me atormentar... ah cresce velho! A única coisa que não muda é que tudo muda!

Velho – Não sei o que seu pai e sua mãe fizeram com você! Na sua idade eu já me sustentava! A herança que te deixaram não te fará diferente do que eu fui... Agora quem te educa sou eu e você vai entrar na linha doa o que doer!

Jovem – Você acha que a vida é algo definitivo...

Velho – A vida precisa de raízes!

Jovem – Consegue pensar como você era 10 anos atrás? E se pensar ainda mais atrás? Não tinha sonhos? Desejos? Será que quando era criança não tinha medo do escuro?

Velho - Eu não estou ouvindo isso...

Jovem – Percebe como a vida te modificou...

Velho(interrompendo) Eu sou a mesma pessoa!

Jovem(olhando nos olhos do Velho e pensando enquanto fala) Não sei o que você será daqui 10 anos, mas eu serei uma versão melhorada de mim, e mesmo que não se de conta disso, eu sou melhor que você... Você não vai me impedir de nada...

(Pausa e silêncio)

Velho(Aproxima-se. Com os narizes quase encostados fala baixo) Eu posso te impedir de tudo...

Velho sai de cena. Em um surto de raiva o Jovem altera todo o cenário. Agora cadeiras, pratos, mesa, armários, roupas, quadros, toalha de mesa e sofá ocupam outras posições no espaço e tem outras lógicas de utilização. Ao fim desta mudança o Jovem se coloca novamente embaixo do tapete que está do avesso.

Velho(se deparando mais uma vez com aquela situação) – Outra vez aí?

(Jovem fala debaixo do tapete)

Jovem – Ninguém pode convencer ninguém a mudar. Os portões da mudança só podem ser abertos de dentro para fora.

Velho(indicando o ambiente) Definitivamente eu desisto de você.

Jovem – Que bom! (cantarolando) “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”...

Velho – Você começa trabalhar amanhã, na padaria. Vai seguir o mesmo caminho que eu...

Jovem – Vô... O caminho que desce e o caminho que sobe são os mesmos, você sabia? E eu não vou seguir o seu caminho...

(Jovem sai de baixo do tapete com uma arma na mão)

Jovem – A guerra é mãe e rainha de todas as coisas. E aqui eu mudo meu caminho.

(Tiro)

Jovem mata o avó com 4 tiros. O último a queima roupa quando o Velho já está no chão. Calmamente o Jovem muda mais uma vez todo o cenário. Cadeiras, pratos, mesa, armários, roupas, quadros, toalha de mesa e sofá ocupam outras posições no espaço e tem outras lógicas de utilização. Ao fim desta mudança o Jovem arrasta o corpo do avô e o coloca embaixo do tapete que está do avesso. O Jovem caminha para a saída de cena, mas antes de sair volta e coloca o tapete, agora do lado certo, sobre o corpo do Velho antes de sair de cena.

FIM

sexta-feira, 30 de junho de 2017

Sobre-humano ronda sútil

De todas as incertezas da vida a que mais é certa seja talvez a mais distante de entendermos. Se existe um antes, um agora e um depois muitos não sabem. Outros acreditam que isso é uma pauta envelhecida, não há discussões. Existem ainda os que acreditam apenas no agora. E tudo bem! Sincretismo nunca foi problema para os nossos. São tantas as camadas que nos envolvem e tantos mistérios como já escreviam no passado "entre o céu e a terra" que bastaria aos nossos apenas o respeito com qualquer um que seja identificado. O respeito. Esse pequeno termo e essa incomensurável qualidade é algo que eles sempre esperam e os nossos se afastam, com sagacidade. E tudo bem também! Se estamos dispostos a acessar esse arcabouço que temos em mira torta inconsciente basta seguirmos. Que os nossos aceitem que não somos iguais, que não existe proselitismo em nosso tempo a não ser do próprio tempo. É por isso que hoje eu sou folha. Eu fui a representação do tempo no instante de agora. Um conserto que passou com a brisa, com estes instantes breves farfalhantes, com as estações, com o frio, com o seco. A deriva da sorte, eu, que sou um ser solitário, desligo-me de tudo que fazia parte, de tudo que continha e do espaço que ocupava. Vago pelo ar, dançando e flutuando por cada sopro que me carrega, nunca paro seco, abruptamente. Nunca paro e seco. Até as minhas cicatrizes, minhas ranhuras viraram pó. Do pó ao pó. Das cinzas as cinzas, assim o que me basta é broto, é tronco. E renascido no meio desses outros eu busco evoluir, por mim, sempre pensando neles...

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Sra. M.

A situação caótica e esquizofrênica que vivemos nos aprisiona cada vez mais. Precisamos nos reinventar e nos recriar para que nossas funções e nossa forma de viver não seja responsável por nos amarrar em uma sociedade e em uma política cobra-coral. Cabe a nós, artistas, nos desvencilhar dessas amarras impostas e nos retirarmos dessa teia amoral que estão tentando nos jogar. Somos a armada revolucionária que explode com pensamentos. Se somos contrários a vigência condicional estabelecida precisamos nos ligar com força, eletricidade, interruptores e colorirmos essas vistas cegas acinzentadas de ódio e banhadas em lágrimas de uma mulher chamada mídia. Ela nos conta coisas que não são verdadeiras. Ela nos faz amar pessoas que nem conhecemos. Ela nos faz gastar sem ter. Querer sem querer. Ela é uma serpente que nos hipnotiza e dá o bote exatamente no aurículo esquerdo injetando sua peçonha bem pertinho da aorta. Um segundo depois nossos corpos e mentes estão tomados por esse elixir contrário que corre por dentro de nossas veias. Três segundos depois exala por nossos poros. O aroma não é humano. É aroma humano fétido putrefato. Bons eram os tempos que ao olharmos virávamos pedra. Éramos um agregado sólido que se constituía naturalmente, minerais ou mineraloides, não importava, éramos um. Agora os entendidos se denominam petrologistas e insistem em nos encaixotar, classe a classe, montadas pelo cheiro que exalamos, mas nossos cheiros já não importam mais, eles nos contam nada, somos apenas fragmentos soltos solitários de sal. Doces eram nossos sonhos que se esvaziaram como bexigas sem nó que urram tristes espiralando cheias de desespero quando lembram de tudo que possuíam esvair. Caímos. Murchos. Mortos.  

terça-feira, 25 de abril de 2017

Pintos, pintassilgos e pintarroxos

Ah amor passarinho... Doente de mentira você partiu. Mais uma vez. Mal sabes tu que bula medicamentosa não é poesia. Sempre cantei que iria te fazer feliz, te cuidar e te fazer bem. Ah eu cantei... Minha moradia, simples é verdade, como a do joão-de-barro, era só mais um oportunismo para que não voasse sozinho. Minha moradia, agora entendo, era só um descanso para suas asas perdidas que te levam para um caminho menino. Cantei que minha casa foi sua moradia quando precisou, nunca sua gaiola. Ah amor passarinho... As portas sempre ficaram e continuarão abertas, não se esqueça disso, aqui as portas são sentimentos-verdade. Tudo que fiz foi te fazer bem para você ficar. E você ficou até se prender e perder nessa grande rede que foi seu alçapão. Saiba que nem tudo que voa é passarinho. Nesses dias de tecnologia nada se apaga e informação é bumerangue que sabe voar e voltar tal qual as borboletas que sempre voltam, mesmo que existam pedras no caminho, ah amor passarinho... Cuidado com seu velho-novo caminho, mesmo que você não veja as pedras estão lá, invisíveis como a sensibilidade que me conta tudo. Tudo é revelado, passe mais ou menos tempo, o bailado termina, a arte é só a vida e as máscaras quando usadas por debaixo do rosto logo trincam, pois são feitas de barro, e pelas frestas invade a luz com toda veracidade e sinceridade, ah amor passarinho... Era só isso que eu queria. Aqui os dias se transformam em noite e a noite todo predador de passarinho tem bigode grande e é falso pardo. Você já se feriu com isso. Atente-se! Dançar pode ser perigoso, principalmente se acompanhar ratos e morcegos que te guiarão com cabrestos, como já te guiaram no passado, e você dará com a cabeça na parede e quebrará seu bico no final. Te peço para que jamais, em hipótese alguma, coma pedra. Plantei em ti muita coisa boa e só colhi o que pedi para não me oferecer: mentiras e falsidades. Ah amor passarinho... ainda bem que sei voar. E assim alço voo com minha consciência limpa, leve e sincera como sempre fui, como sempre serei.   

sexta-feira, 31 de março de 2017

Quando existiam as cartas

Eu sei que ainda não tivemos a oportunidade de nos conhecer e já temos uma relação tão próxima que sou capaz de sentir seu cheiro e me colocar dentro do seu abraço. Nossas confidencias são tão reais que consigo ouvir sua voz me contando o que estou lendo. Eu sei até o momento que você faz as pausas e fica pensando... (como está agora, agora você está sorrindo). Tenho tanto para te contar que com palavras não sei dizer, sim! Estou parafraseando Roberto, que você tanto gosta. Agora falando sério, eu tenho algo muito importante para contar. Eu decidi ser mãe. Estou com muito medo dos desdobramentos dessa decisão. Eu acredito que já tenho idade suficiente mas fico assustada quando leio coisas sobre “o aprender ser mãe” apenas depois de ser mãe. Talvez seja algo muito particular, uma incerteza que logo passa, mas eu tenho medo da sociedade que vivemos, das intolerâncias, da violência que a criança pode sofrer por conta do que eu sou. Não tenho receio algum do apoio da minha família, sempre estiverem do meu lado, e continuarão. Mas e os outros? Eu gostaria de entender tudo isso que borbulha em mim. Eu queria acordar e ver aquela coisa fofa dormindo no berço e durante a noite chorar para que eu logo dê de comer. E se eu não der de comer? E se eu me cansar da criança? Será que posso devolver? Gostaria de vê-la crescendo, e nessa fase me reconhecer nela. Ver o meu nariz, meu cabelo, meus trejeitos, e até minha personalidade. E se eu não me reconhecer nela? Biologicamente é impossível apenas uma pessoa gerar uma criança, mas o futuro está logo ali, não é? Eu não vou esperar o futuro. Eu já decidi que serei mãe. Eu já decidi até o nome. Vai ser um nome indígena e vou contar em primeira mão para você. Então se prepare! O nome será Aruã. Isso mesmo, Aruã. Um nome que serve para meninos e meninas e significa sentinela. Essa criança será o/a sentinela do futuro, um futuro que ela viverá, eu não. Ele ou ela será o início do tempo feliz. Do novo. Eu até comecei a costurar um boneco para Aruã. Esse boneco será o seu eterno patuá. Sua proteção. Eu acho aquela coisa de fazer sapatinho de crochê muito ultrapassado, por isso estou tecendo esse boneco que será muito significativo. Ele terá vários defeitos, pois estou costurando pela primeira vez. Estou usando um arco íris de cores de linhas, pois acredito na pluralidade das coisas. Ele terá um olho azul e outro rosa, para enxergar todas as possibilidades e no lugar do coração uma pena indígena que representa proteção e sabedoria. Essa pena eu ganhei dos meus pais antes de partirem para seu último trabalho. Depois disso nunca mais os vi, apenas senti. Decidi então dar como primeiro presente para meu filho um boneco que faz parte das últimas lembranças que tenho dos meus pais. De alguma forma é maneira que encontrei para a continuidade da nossa linhagem. Ah, já ia esquecendo, Aruã será seu afilhado/a. Um grande beijo meu e um até logo de Aruã que chegará em 7 meses.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Talvez uma poética realidade, talvez

Mais uma vez naquele lugar. Um lugar que se não fosse tão meu, tão particular, não seria possível sequer imaginá-lo. Desde criança meu porto seguro. Não a toa estava eu ali, no píer, que agora tem algumas madeiras atravessadas mal encaradas e infelizes que denotam a idade e a exposição persistente ao relento. Mas era uma vez diferente de todas as outras. Chovia. E isso não quer dizer que nunca estive antes, ali, vivendo essa intempérie. Era um momento diferente. Definitivamente eu estava encharcado. Cada gota da constante chuva me fazia pensar, me fazia pesar. Talvez um sinal que o tempo/espaço naquele encontro estivesse dilatado. Cabelos, rosto, pescoço que servia de duto para levar água até meu peito, abdômen, pernas e pés. Era um total desconforto sendo abastecido por cada pingo d´água. Contudo o que mais incomodava eram os pés molhados. Ainda assim eu persistia ali, tal como uma palmeira imperial enraizada naquela margem que parecia um traço fino de nanquim cuidadosamente concebido por algum artista em seu caderno de rabiscos. A margem também continha algumas plantas delicadas que estavam envergadas pela insistência da chuva torrencial, já outras, sequer abalavam-se e permaneciam plenas e destacadas com suas cores neon. Ao centro a grande quantidade de água parada, que de cima parceria uma grande poça d´água, recém-inaugurada, como há cinquenta anos, era um convite ao silêncio não fosse a sonata dos pingos de chuva que feito kamikazes se atiravam da imensidão do céu. A cada impacto eles rascunhavam a formação de uma correnteza que preguiçosa se desfazia três segundos depois como se pegasse no sono ao ouvir toda a musicalidade do momento. Ainda assim eu consegui submergir o pensamento naquelas águas que serviam para mim, de alguma forma, como alimento, como elixir. Bebi. Tomei como fazemos com caldos quentes em dias frios. Sentia o cheiro de tudo aquilo em mim. Era uma espécie de salto quântico em que podia viver o passado, o presente e o futuro no mesmo instante da minha vida. Depois aconteceu um maremoto de sensações. Já não sabia ao certo o que sentia, o que pensava, onde eu estava ou quanto tempo passou. Fato é que já não importava mais. Eu só queria estar. E assim estive por mais alguns instantes até que a última gota aconteceu. Ela não se atirou do céu como as demais produzindo música, ela apenas rolou e vazou como maré dos meus olhos, molhando assim a última parte que faltava.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

A era do não

Realmente, estamos vivendo uma era inglória. Uma era confusa, uma era que não podemos chamar por um herói, pois não o temos. Precisamos ser nossos próprios heróis. É importante que se diga antes de tudo, que por definição, herói é uma pessoa de grande coragem ou autora de grandes feitos, ou ainda, personagem nascida de um ser divino, contudo, de seres divinos estamos definitivamente distanciados. Somos mais humanos que nunca. Somos mais incertezas que nunca. Somos mais desumanos que sempre. Notamos que o não prevalece entre nós. Sim, a certeza do não. E assim temos certeza de não possuir certeza alguma. Tudo tem sido mais difícil, até mesmo as pequenas coisas. Viver tem se tornado um ato heroico, principalmente nas cidades. Principalmente nas grandes cidades. Certa vez li de um psiquiatra francês: “... cidades com quatrocentas a quinhentas mil pessoas são desvios da natureza.” Logo nós, frágeis humanos que estamos inseridos nessa grande bolha urbana transviada não passamos de seres errantes desviados de nossa singela condição. Não vejo mais um olhar em minha direção. Não mais converso olhando em olhos. Tudo é apenas um momento que já passou. Será que nós estamos apenas passando? Eu tenho vontade de parar. A era do não diz apenas “não!”. Sigo. Sigo tentando me metamorfosear em meu próprio herói com a esperança ele não acabe com heroína.