segunda-feira, 31 de julho de 2017

O devir

Luz sobe.

A cena acontece em uma sala. É uma sala bagunçada. Algumas coisas não parecem fazer sentido. Os objetos estão deslocados de seus locais habituais. As cadeiras estão em cima da mesa. Os pratos estão embaixo dos pés da mesa. Os armários estão com as portas abertas e as roupas estão em cima do armário. Os quadros estão no chão, a toalha de mesa pendurada no lugar de um quadro, o sofá com os pés para cima e o tapete é usado do avesso. Embaixo dele há uma pessoa.

Entra um velho que observa a situação antes de falar.

Velho (se deparando mais uma vez com aquela situação) – Outra vez aí? Definitivamente você precisa melhor seu convívio social...

Jovem (saindo debaixo do tapete com tom de revolta) – Me deixa em paz! Eu só quero viver meu devir!

Velho – Isso está saindo do controle! Todo dia quando volto para casa encontro ela diferente! Olha pra isso... (indicando o ambiente)

Jovem – Será que ainda vai perceber neste tempo que te resta que a vida é mudança? Não suporto essa ideia de viver todos os dias iguais... Acordar cedo, ir à padaria, ler o jornal, voltar pra casa e me atormentar... ah cresce velho! A única coisa que não muda é que tudo muda!

Velho – Não sei o que seu pai e sua mãe fizeram com você! Na sua idade eu já me sustentava! A herança que te deixaram não te fará diferente do que eu fui... Agora quem te educa sou eu e você vai entrar na linha doa o que doer!

Jovem – Você acha que a vida é algo definitivo...

Velho – A vida precisa de raízes!

Jovem – Consegue pensar como você era 10 anos atrás? E se pensar ainda mais atrás? Não tinha sonhos? Desejos? Será que quando era criança não tinha medo do escuro?

Velho - Eu não estou ouvindo isso...

Jovem – Percebe como a vida te modificou...

Velho(interrompendo) Eu sou a mesma pessoa!

Jovem(olhando nos olhos do Velho e pensando enquanto fala) Não sei o que você será daqui 10 anos, mas eu serei uma versão melhorada de mim, e mesmo que não se de conta disso, eu sou melhor que você... Você não vai me impedir de nada...

(Pausa e silêncio)

Velho(Aproxima-se. Com os narizes quase encostados fala baixo) Eu posso te impedir de tudo...

Velho sai de cena. Em um surto de raiva o Jovem altera todo o cenário. Agora cadeiras, pratos, mesa, armários, roupas, quadros, toalha de mesa e sofá ocupam outras posições no espaço e tem outras lógicas de utilização. Ao fim desta mudança o Jovem se coloca novamente embaixo do tapete que está do avesso.

Velho(se deparando mais uma vez com aquela situação) – Outra vez aí?

(Jovem fala debaixo do tapete)

Jovem – Ninguém pode convencer ninguém a mudar. Os portões da mudança só podem ser abertos de dentro para fora.

Velho(indicando o ambiente) Definitivamente eu desisto de você.

Jovem – Que bom! (cantarolando) “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”...

Velho – Você começa trabalhar amanhã, na padaria. Vai seguir o mesmo caminho que eu...

Jovem – Vô... O caminho que desce e o caminho que sobe são os mesmos, você sabia? E eu não vou seguir o seu caminho...

(Jovem sai de baixo do tapete com uma arma na mão)

Jovem – A guerra é mãe e rainha de todas as coisas. E aqui eu mudo meu caminho.

(Tiro)

Jovem mata o avó com 4 tiros. O último a queima roupa quando o Velho já está no chão. Calmamente o Jovem muda mais uma vez todo o cenário. Cadeiras, pratos, mesa, armários, roupas, quadros, toalha de mesa e sofá ocupam outras posições no espaço e tem outras lógicas de utilização. Ao fim desta mudança o Jovem arrasta o corpo do avô e o coloca embaixo do tapete que está do avesso. O Jovem caminha para a saída de cena, mas antes de sair volta e coloca o tapete, agora do lado certo, sobre o corpo do Velho antes de sair de cena.

FIM