terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Talvez uma poética realidade, talvez

Mais uma vez naquele lugar. Um lugar que se não fosse tão meu, tão particular, não seria possível sequer imaginá-lo. Desde criança meu porto seguro. Não a toa estava eu ali, no píer, que agora tem algumas madeiras atravessadas mal encaradas e infelizes que denotam a idade e a exposição persistente ao relento. Mas era uma vez diferente de todas as outras. Chovia. E isso não quer dizer que nunca estive antes, ali, vivendo essa intempérie. Era um momento diferente. Definitivamente eu estava encharcado. Cada gota da constante chuva me fazia pensar, me fazia pesar. Talvez um sinal que o tempo/espaço naquele encontro estivesse dilatado. Cabelos, rosto, pescoço que servia de duto para levar água até meu peito, abdômen, pernas e pés. Era um total desconforto sendo abastecido por cada pingo d´água. Contudo o que mais incomodava eram os pés molhados. Ainda assim eu persistia ali, tal como uma palmeira imperial enraizada naquela margem que parecia um traço fino de nanquim cuidadosamente concebido por algum artista em seu caderno de rabiscos. A margem também continha algumas plantas delicadas que estavam envergadas pela insistência da chuva torrencial, já outras, sequer abalavam-se e permaneciam plenas e destacadas com suas cores neon. Ao centro a grande quantidade de água parada, que de cima parceria uma grande poça d´água, recém-inaugurada, como há cinquenta anos, era um convite ao silêncio não fosse a sonata dos pingos de chuva que feito kamikazes se atiravam da imensidão do céu. A cada impacto eles rascunhavam a formação de uma correnteza que preguiçosa se desfazia três segundos depois como se pegasse no sono ao ouvir toda a musicalidade do momento. Ainda assim eu consegui submergir o pensamento naquelas águas que serviam para mim, de alguma forma, como alimento, como elixir. Bebi. Tomei como fazemos com caldos quentes em dias frios. Sentia o cheiro de tudo aquilo em mim. Era uma espécie de salto quântico em que podia viver o passado, o presente e o futuro no mesmo instante da minha vida. Depois aconteceu um maremoto de sensações. Já não sabia ao certo o que sentia, o que pensava, onde eu estava ou quanto tempo passou. Fato é que já não importava mais. Eu só queria estar. E assim estive por mais alguns instantes até que a última gota aconteceu. Ela não se atirou do céu como as demais produzindo música, ela apenas rolou e vazou como maré dos meus olhos, molhando assim a última parte que faltava.